Duas urnas com resultados opostos numa só cidade. Em uma, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) garantiu todos os votos válidos do segundo turno. Na outra, 100% foram para Jair Bolsonaro (PL). Pode parecer roteiro de fake news, mas aconteceu em Charrua, no noroeste do Rio Grande do Sul. E o que soa quase impossível num Brasil dividido eleitoralmente não foi tão raro assim: segundo levantamento do GLOBO com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 147 seções do país um dos candidatos ao Palácio do Planalto conseguiu ser unanimidade no último domingo. O placar foi favorável ao petista, que venceu sem chance alguma para o adversário em 144 urnas, contra três dessas vitórias absolutas para a conta de Bolsonaro.
Um dos consensos chegou a virar teoria conspiratória de fraude nas redes sociais e aplicativos de mensagens. Numa seção de Confresa, no Mato Grosso, teoricamente um domínio bolsonarista, foram 383 votos válidos, exclusivamente em Lula. Mas o que gerou estranheza nas redes sociais foi logo esclarecido pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE-MT): a urna da Escola Estadual Tapi’itawa recebeu os votos da aldeia indígena Urubu Branco. E, como o cacique local confirmou, todos optaram, de fato, pelo petista.
Esse mesmo fenômeno se repetiu em outras regiões, majoritariamente longe dos grandes centros urbanos, em povoados rurais, aldeias indígenas e comunidades quilombolas ou ribeirinhas. Nos locais onde estavam essas urnas, 22 tinham “aldeia” no nome; 27, “comunidade”; e outras 51, “povoado”. No Mato Grosso, apesar da vitória de Bolsonaro com 65,08% dos votos, áreas indígenas de Confresa e de outros quatro municípios (Porto Alegre do Norte, Campinápolis, Santa Terezinha e Peixoto de Azevedo) deram 100% dos votos válidos para Lula.
No Amazonas, São Gabriel da Cachoeira foi o município campeão de unanimidades em favor do petista: sete vitórias de 100% , todas em regiões rurais indígenas no Alto Rio Negro, algumas delas em áreas de acesso muito difícil , na fronteira com a Colômbia ou próximas ao Parque Nacional do Pico da Neblina. Ainda no estado, o presidente eleito também foi apoiado pelas comunidades indígenas Vendaval e Santa Inês, ambas no Alto do Rio Solimões, em São Paulo de Olivença.
Num predomínio igual, em Quiterianópolis, no Ceará, os indígenas Tabajaras deram 100% dos votos a Lula — só dois votaram nulo, no número 12, segundo o registro digital da seção. Elenize Tabajara, uma das lideranças locais, diz que o apoio foi natural.
— Somos nordestinos no sertão do Ceará. A maioria aqui tem grande admiração não pelo PT, mas pelo governo que Lula realizou. Bolsonaro não fez um bom governo, principalmente, para comunidades indígenas e quilombolas — diz ela, numa região onde a maioria trabalha com agricultura, não recebe Auxílio Brasil e foi beneficiada por políticas dos mandatos de Lula.
No Maranhão — estado com mais urnas em que Bolsonaro saiu zerado da votação (47) —, o cacique Carloman Koganon Canela, do território Kanela/Memortumré, explica as motivações que levaram o petista a ter 100% da preferência. Entre as razões de insatisfação com o atual governo, cita a construção de uma estrada que afirma ser irregular:
— Aconteceram coisas graves nela. Um indígena foi atropelado, outro desapareceu, e não encontramos o corpo. Isso no tempo do Bolsonaro. Mas também tem a questão do clima, e é preocupante o desmatamento no atual governo.
Na Bahia, no município de Seabra, na região da Chapada Diamantina, quilombolas do Capão das Gamelas votaram em peso em Lula, que ganhou de 141 a zero. Já no Sul do Brasil, na gaúcha Charrua, foi de um ginásio onde moradores de uma reserva indígena expressaram sua vontade que Bolsonaro saiu zerado, e o rival contabilizou 302 votos. Numa zona rural do próprio município, porém, o atual presidente deu o troco: marcou 76 a zero no Salão Comunitário Linha Floresta. O prefeito da cidade, Valdésio Roque Della Betta (PP), votou em Bolsonaro, mas garante: o resultado foi consequência da divisão natural da população.
— Nosso município é pequeno, tem 3,5 mil habitantes. Em Linha Floresta, os eleitores são, principalmente, ligados ao agronegócio, produtores de soja e milho — explica o prefeito.
Resultados radicalmente opostos foram registrados ainda no Pará. Num colégio da Ilha Viçosa, no município de Chaves, Bolsonaro conquistou todos os votos válidos. Na foz do Rio Amazonas, o povoado faz parte do arquipélago de Marajó, que desde 2019 aparece em polêmicas geradas pela senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF), ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do atual governo. A última controvérsia foi na corrida eleitoral deste ano, quando ela disse, sem apresentar provas, que crianças de Marajó estariam sendo traficadas para exploração sexual. Mas, também no arquipélago, houve seção em que Lula foi absoluto: um centro de recuperação regional do município de Breves.
É de lugarejos rurais quase a totalidade das seções de Minas Gerais em que a apuração terminou com um só candidato votado. O TRE mineiro levantou o perfil de alguns desses povoados, onde prevaleceu o petista. Em Bertópolis, no Vale do Mucuri, duas urnas 100% Lula estavam numa aldeia da etnia Maxakali. Em Januária, resultados semelhantes vieram de duas comunidades rurais, onde também há quilombos, a uma distância a mais de 50 quilômetros por estrada de terra do centro do município. No norte mineiro, outra seção com unanimidade estava num interior isolado e carente, a 14 quilômetros do distrito mais próximo, de Tocandira. E na mesma região, no município de São Francisco, é preciso atravessar o rio de balsa, numa viagem que demora duas horas, para chegar à comunidade Barra dos Caldeirões, onde Bolsonaro tampouco teve votos.
Já em Carmésia, no Vale do Rio Doce, havia duas seções na aldeia Pataxó, na Reserva Guarani. Em uma delas, a 42, só houve votos para Lula. Na 43, Bolsonaro só se livrou de ficar zerado porque teve um único voto.
No exterior
Houve quatro urnas com placar de 100% a zero até mesmo nos locais de votação para brasileiros que vivem no exterior. Fica na Venezuela, tantas vezes citada na campanha, um dos exemplos: em duas seções da capital Caracas, a abstenção foi quase generalizada, mas os que compareceram às urnas foram todos a favor de Bolsonaro. Lula, por sua vez, reinou sozinho numa seção de Porto Iguaçu, na Argentina, e em outra de Havana, em Cuba.
As urnas que registraram unanimidade não tiveram relevância no resultado final das eleições: elas representaram cerca de 0,03% dos 60,3 milhões de votos que Lula obteve.
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